OPINIÃO: As locadoras de veículos, em processos envolvendo acidente de trânsito, no uso do automóvel locado, têm sofrido diversas condenações em solidariedade com o locatário, com base na Súmula 492 do Supremo Tribunal Federal (STF).
O enunciado, editado em 3 de dezembro de 1969, determina que “a empresa locadora de veículos responde, civil e solidariamente com o locatário, pelos danos por este causado a terceiro, no uso do carro locado”. Passaram-se quase 52 anos desde sua edição e até hoje os tribunais brasileiros seguem aplicando o entendimento de forma genérica e indiscriminada, praticamente culpando a locadora pelo ato negocial da locação, sem aferir de fato a existência de provas sobre sua responsabilidade.
A Súmula 492 do STF tem como precedentes os recursos extraordinários RE nº 60.477, julgado em 1966, RE nº 62.247, julgado em 1967, e RE nº 63.562, julgado em 1968, os quais pautaram-se na responsabilidade civil subjetiva, na época, prevista no artigo 159 da Lei 3.071/1916 — Código Civil da época, atual artigo 186 da Lei nº 10.406/2002 — Código Civil vigente.
Dos três julgados supracitados, embora todos tenham embasado as respectivas decisões no artigo 159 do Código Civil daquela época e no atual artigo 186 do Código Civil de 2002 — somente o primeiro elucida de forma clara a responsabilidade da locadora, uma vez que, no caso daqueles autos, foi celebrada locação com pessoa não habilitada, que ocasionou o atropelamento de um transeunte.
Contudo, atualmente, nos tribunais, a responsabilidade solidária das locadoras é sempre reconhecida, com base na aplicação indiscriminada deste enunciado, sem nenhuma análise pormenorizada do caso concreto. Porém, é cediço que a solidariedade não se presume, pois ela decorre da lei ou vontade das partes, conforme prevê o artigo 265 do Código Civil, e mesmo no âmbito do Código de Defesa do Consumidor deve-se sempre observar as famigeradas excludentes de responsabilidade.
No ordenamento brasileiro, não existe lei que disponha sobre a responsabilidade solidária entre a locadora e locatário, exceto quando se aferir ato negligente, ou até mesmo doloso, por parte da locadora, como ocorrido no julgado de 1966. Já no Código de Defesa do Consumidor (CDC), o parágrafo 3º do artigo 14 é bastante claro ao trazer as excludentes de responsabilidade oriundas de inexistência de defeito ou de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros.
A atividade de locação de veículo, no Brasil, teve início na década de 50, logo após a indústria automobilística ter sido impulsionada pelo Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. No entanto, foi na metade da década de 1960 que a atividade começou a ganhar impulso, vivendo em crescente expansão desde então.
A súmula tema tem origem justamente em processos relacionados a fatos ocorridos nessas décadas, período de início das atividades do setor, momento em que as diretrizes, para o seu desenvolvimento, estavam ainda em processo de implantação. Os cuidados que se têm hoje ao alugar um automóvel e a dinâmica em que o serviço é prestado nos dias atuais nem se comparam aos daquela época.
O Brasil conta com mais de 10,8 mil locadoras em atividade, segundo dados da Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis ( Abla). A frota do setor é de aproximadamente um milhão de veículos, sendo 52% para terceirização, 20% para motoristas de aplicativo e 28% para locação em turismo de negócio e lazer.
Atualmente, se exige um alto padrão de qualidade tanto dos veículos fornecidos quanto com quem se celebra a locação. Diversos dados são conferidos no ato do negócio, tais como habilitação e até mesmo a capacidade financeira do locatário. Algumas locadoras realizam, inclusive, consultas financeiras e judiciais, a fim de garantir um negócio jurídico sólido e seguro.
Trata-se de uma área em constante crescimento e com grande participação na movimentação econômica do país, logo é de extrema importância a criação de normas que regulamentem e delimitem a responsabilidade das locadoras, normas essas que representem toda a dinâmica atual do setor e da sociedade.
Nesse sentido, tramitaram na Câmara dos Deputados, em apensado, os Projetos de Lei nº 7.649/10 e nº 4.457/12, ambos com o objetivo de eximir as locadoras de arcar solidariamente com eventuais indenizações decorrentes de danos causados pelo locatário a terceiros, responsabilizando exclusivamente os locatários de veículos pelos danos que causarem a outrem no uso do veículo locado.
A base central da proposta adveio do fato de que o locador, ao celebrar a locação e disponibilizar o veículo ao locatário, transfere a posse direta do bem, não podendo, somente, pelo simples ato comercial de disponibilizar o veículo em locação, responder pelos danos eventualmente ocasionados por culpa única e exclusiva do locatário.
O texto do Projeto Lei nº 4.457/12 acrescentava um parágrafo único ao artigo 556 do Código Civil, dispondo que a responsabilidade solidária só permaneceria quando o próprio locador contribuísse para o dano, de maneira dolosa ou culposa. Enquanto o PL nº 7.649/10 objetivava acrescentar um parágrafo único ao artigo 932 do mesmo diploma, com a seguinte disposição: “Os locatários de veículos respondem exclusiva e isoladamente pelos danos que causarem, por atos próprios, a terceiros em decorrência da utilização de veículo locado”.
O projeto foi vetado no ano de 2015 pela então presidente Dilma Roussef, que, em síntese, sustentou que o PL se limitava à previsão de regra geral, sem considerar as especificidades dos diversos contratos de locações existentes. Ainda que em atividades que implicassem em risco, acarretaria ônus excessivo ao terceiro, decorrente da necessidade de comprovação de dolo ou culpa.
Apesar dos argumentos acima, deve-se frisar que, primeiro, não há previsão legal que classifique a atividade de locação de veículo como perigosa, o que impossibilita a aplicação da teoria do risco em relação ao desempenho da atividade; segundo, todos os precedentes que deram origem à súmula atentaram-se à análise de evidências que apontassem para o dolo ou culpa da locadora de veículo — como o caso de permitir locação à pessoa não habilitada.
Sendo assim, simplesmente não regulamentar a questão e manter a aplicação de decisões de décadas passadas é desconsiderar o âmago da súmula, bem como a evolução social e legislativa desde sua edição.
Infere-se, então, que o Direito evoluiu, assim como os setores de locação e o automotivo, mas o conceito genérico da súmula permanece perpetuado pelos tribunais, cuja maioria sequer se acautela na análise dos casos que deram origem ao apanhado, a fim de constatar similaridade com a situação sub judice, antes de discricionariamente aplicá-lo ao caso concreto.
Depreendem-se, por fim, duas soluções ao tema, quais sejam: a regulamentação urgente da matéria, a fim de garantir somente responsabilização das locadoras de veículos, nos casos de danos causados pelos locatários, quando constatada a presença de dolo ou culpa de sua parte; ou considerar o uso da técnica do distinguishing, difundida no Código de Processo Civil como um meio de corrigir e coibir fundamentações superficiais e até mesmo a ausência de verificação da simetria ou não do caso concreto com os precedentes a serem aplicados.
Por Gabriela Cardoso Macedo
Fonte: ConJur